Muitos anos atrás fiz uma viagem para o interior de Minas. Faz tanto tempo que não me recordo para que, quando ou para onde. Desta viagem guardei uma lembrança, ou melhor, uma reflexão, quando parei em uma vendinha na beira de uma estradinha de terra.
Fazia um calor danado. Sede e fome. Entrei na vendinha e por sorte o comerciante vendia um pão com linguiça maravilhoso. Linguiça caipira. Não tinha refri e, por mais sorte ainda, tinha garapa(caldo de cana). Pedi uma caneca e outra surpresa: o vendeiro trouxe gelo retirado de uma geladeira toda enferrujada, mas que ainda cumpria(e bem) a sua função. Me preocupei com a química em meu estômago e nos efeitos posteriores. Enfim, nada que uma boa flatulência não aliviasse. Se a fermentação fosse mais séria, moita é que não faltava, e como sempre fui prevenido, sempre que viajava trazia comigo papel higiênico e guardanapo de papel.
Puxei um dedo de prosa com o vendeiro. a conversa não durou muito. Ele me pediu licença e disse que ia dar um geral nos ninhos para colher ovos. Sumiu atrás de uma cortina de chita estampada.
Pensei cá com os meus botões: tô na Europa. Ri baixinho. O vendeiro me largou ali. Eu no balção saboreando o sanduba espetacular, curtindo a minha garapa geladinha. As mercadorias ao meu inteiro dispor. O caixa também, em cima do balção: uma caixa de sapato onde o vendeiro jogava notas e moedas.
Um despautério de confiança e honestidade sobrevivendo, uma e outra, nos grotões interioranos.
O vendeiro estava demorando. Eu sem pressa, já pensando no segundo pão com linguiça e no repeteco na garapa.
Saí e me sentei num banco de madeira. Daí a pouco chegou um caipira aparentando uns cinquenta anos.
-Tarde...
-Tarde...
- Cadê o Aniceto? O Sôr viu ele?
Lógico que era o vendeiro.
- Ele foi apanhar uns ovos no galinheiro.
- A pois...Antonce vamu esperá, nemês?...
- É o causo, respondi entrando no clima rural.
O vendeiro voltou e disse que a galinhada tinha botado um monte de ovos. Sorriu para nós e perguntou se eu queria outro pão com linguiça e mais garapa. Não só aceitei como pedi pra ele prepara dois: um pra comer agora e o outro pra viagem. E mais garapa, por favor.
- I ocê, Cajuca?... que qui ocê qué?
- Tarde, Aniceto...ieu quero uma branquinha e um tiquim de linguiça.
Aniceto atendeu o Cajuca, sentou-se atrás do balção com as duas mãos escorando a cara. Ficou ali, com os olhos perdidos não sei onde por um bem tempo. Matutando...
Cajuca saboreava a branquinha e ia beliscando a linguiça.
Virou-se pra mim e disse:
- Tá silvido?
Agradeci.
Sôr num repare... vou lá pra beira da istrada esperá o caminhão do leite. Ele passa agorinha...
- A pois, o senhor fique a vontade.
Cajuca, respeitoso, tirou o chapéu de palha para mim. Sentou em um pequeno cupim ao lado da estradinha. Fiquei observando. Daí a pouco, tirou um pedaço de fumo de rolo do bolso. Esticou a palha com o canivete e começou a picar o fumo. O ritual era lento e caprichoso. Cigarro enrolado, molhou uma das pontas com os lábios e acendeu o cigarim.
Não sei porque esqueci do tempo. Me esqueci da vida, dos horários e fiquei observando discretamente o Cajuca do outro lado da estrada. Cajuca pitava e de vez em quando dava uma baforada para o alto. Acompanhava a fumaça com os olhos, esquecido de tudo, como se a vida se resumisse a observar a fumaça azulada subindo, subindo, até sumir.
Sem que eu percebesse, entrei no clima contemplativo e comecei a matutar sobre a minha vida e a daquele homem simples.
As comparações são inevitáveis. Eu, urbano, casado, com filhos pra criar, emprego, chefe, horário e uma rotina atribulada para subir na vida. Como subir na vida vivendo uma vida de rotina? Ri comigo mesmo. Rotina não rima com sucesso, é uma sucessão de mesmice na qual está implícito a falta de criatividade e, portanto, de oportunidade. Morreria empregado? Ainda que tivesse minhas ambições e batalhasse para realizá-las, minha vida era como a de milhares perdidas no anonimato e na tábua rasa dos cidadãos comuns.
Como consolo, eu me dava algum valor. Era um homem razoavelmente culto e foi justamente aí que me dei conta que todo o meu conhecimento só servia para criar um abismo entre mim e o Cajuca.
Enquanto eu questionava tudo, vivia todos os conflitos existenciais que afligem o homem moderno, Cajuca, sentado à beira do caminho, via a vida passar.
Enquanto eu eventualmente tinha as minhas crises de fé decorrentes de um mundo absurdamente desigual, Cajuca, na missa de domingo, comungava e com o Cristo na alma, certamente a tudo aceitava sem questionar. Uma dor para mim insuportável, para Cajuca era a vontade de Deus. Se culpas e arrependimentos me consumissem, Cajuca, por sua vez, confessava os seus pecados com o vigário.
Enquanto eu olhava o céu e a imensidão do firmamento, buscando um sentido para a vida, chocado com a nossa pequenez diante do cosmos, humilhado por tanta insignificância, Cajuca apenas contemplava as estrelas e a Lua.
Não sei até hoje por quanto tempo me demorei na porta da vendinha. Não foi pouco tempo.
Então me dei conta que aquele homem simples sabia muito mais do que eu. Isto a princípio me chocou. Mexeu com a minha vaidade e com o meu amor próprio.
Cajuca era um filósofo. Trazia consigo toda a sabedoria do mundo. A distância entre nós era enorme. Trazia consigo certezas e conhecimentos que nem as melhores universidades do mundo poderiam proporcionar. A harmonia e a paz estampada naquele rosto precocemente encarquilhado pelo sol marcaram para sempre a minha vida. Por isso esta viagem foi inesquecível.
Conhecimento é harmonia. Sabedoria é desse jeito. Hoje eu sei que nada sei e que Cajuca sabe de tudo. Ele pode até não conseguir contar como é que se chega a este estágio de plenitude. Ele intui.
Os mansos herdarão a Terra. Estão integrados com a criação. Viajam pelo tempo e pelas vidas entendendo que tudo é assim. Não fazem perguntas. Não duvidam. Sabem...Para os Cajucas o dia de amanhã, o agora e o ontem é tudo a mesma coisa.
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