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14/06/2021

Anos atrás li um livro maravilhoso: Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado.
Como a arte imita a vida, ou vice versa, uma história de solidão, vida em brancas nuvens e desesperança aconteceu com a tia de minha mulher: Tia Zefa.
Professora do primário no anos 30 e 40 em Guaraciaba (MG), Tia Zefa começou a ter problemas de visão.
Seu irmão Joaquim, meu sogro, sempre a levava à Ponte Nova, a maior cidade da região para consultas com um determinado oftalmologista.
Viagens infrutíferas.
Os parcos recursos da família e o atraso da oftalmologia da época pouco puderam fazer por ela.
Tia Zefa ficou completamente cega aos 35 anos e nunca mais pode contemplar o singelo jardim bem em frente à sua casa. Pior: nunca mais poderia ver os Santos de sua devoção, admirar-se com as coroações de Nossa Senhora, em maio, ou se encantar com as missas em latim oficiadas por Padre Dimas - doce e fervoroso pároco da cidade por mais de 40 anos.
Fora moça vistosa, mas por extrema religiosidade e amor ao ensino nunca se casou.
Tudo indicava, entretanto, que a sua cegueira tenha afastado um ou outro pretendente. Restou-lhe o amor à Deus, as missas e os terços diários rezados com a devoção de uma Carmelita Descalça.
Assim foi gastando os anos, reclusa em sua casinha, onde vivia só, vez por outra acudida por um parente ou vizinho para leva-la à Igreja.
Visitei-a várias vezes ao longo de anos, sendo que na primeira vez, convidado por ela para almoçar, fiquei temeroso. Pensei cá com os meus botões: vou encontrar, no mínimo, umas 12 pedras no feijão, verduras com lesmas e outros corpos estranhos à boa cozinha mineira.
Precavido, fui para a cozinha a pretexto de trocar uns 2 dedos de prosa, mas de olho enquanto ela espalhava o feijão sobre a mesa e com a delicadeza de um neurocirurgião ia separando pedras e feijões ruins.
Mesa posta, fartei-me, repeti e fiquei de queixo caído com a excelência da cozinheira.
Eu, meus filhos, meu sogro e minha Maria fomos para a sala jogar conversa fora, enquanto Tia Zefa ligava seu radinho na Rádio Aparecida com 1000% de audiência.
O rádio ficava ligado na emissora o dia inteiro e por boa parte da noite.
Da sala, nas pausas das conversações, ouvia-se o seu fiapo de voz completando as Ave Marias e Pai - Nossos.
Depois dormir, sonhar, talvez com um galante rapaz que a cortejara nos antanhos, acordar, rezar, cozinhar, rezar novamente.
Dela jamais ouvi um lamento, uma queixa ou qualquer atitude ou gesto de revolta ou desgosto com a sua vida em segredo.
Assim como a moça personagem de Autran Dourado que passou pela vida sem dela se dar conta, Tia Zefa aceitara seu destino e dele não se queixava.
Nenhuma amargura em seu coração. Na escuridão de seus dias, havia luz. Uma luz que talvez poucos de nós tenhamos vislumbrado em nossos melhores dias.
Vida de beata com emoções angelicais, Tia Zefa morreu com 98 anos e hoje vive enxergando o paraíso, com visão de 360 graus, em uma das moradas do Pai.
O deserto de sua vida agora deve ser resplendor - talvez entre anjos e santos a quem ela tanto creu e amou.
Talvez esteja, um dia ou outro, à direita de Deus Pai, contemplando a sua Divina Face e orando por nós, pecadores, vivenciando um amor pleno só possível àqueles que, em vida, dele provaram em doses pediátricas, porções de ilusão e inapelável finitude.
"Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus... Alegrai-vos e exaltai, porque será grande a vossa recompensa nos céus

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