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22/05/2021

 CAUSO ASSOMBRADO

Vicente voltava da rua (Oliveira Fortes) com encomendas do Coronel Chico Marciano.
Como tomara umas pingas a mais, não reparou no adiantado da hora e o dia caiu na boca da noite sem lua.
Vicente arrepiou carreira de volta à Fazenda do Formoso pelo caminho que viera (o único): estradinha de terra com uma curva, após a qual, à direita, uma frondosa e imponente figueira assombrada.
Não havia como contorná-la. Dos dois lados uma ribanceira muito íngreme e o risco de rolar por ela quebrando uma perna. Fosse dia de inconha, rachava a cachola.
Adorado pelos netos de Coronel Chico, Vicente , agregado à Fazenda do Formoso, todas noite reunia a criançada após o jantar e às sete horas em ponto contava seus causos de assombração.
Muitos desses causos giravam em torno da figueira.
Vicente foi em frente., dois passos à frente, um atrás aprochegando-se da curva e da árvore amaldiçoada.
Persignou-se, apertou a medalhinha de Nossa Senhora contra o coração e murmurou um "seji o qui Deus quiser".
Uma explosão e uma nuvem verde...
Sentado em um dos grossos galhos, apareceu um moço de bela estampa, olhos vermelhos feito brasa e fala mansa.
- Oncocêvai nessa pressa toda, fio?
- Ieu, ieu...
- Medo, fio? Causdiquê? Ocê inté conta meus causo pros fio do coroné, né mês?
- Todo mijado, Vicente tomou coragem e sapecou:
- Ô sinhô é o demo.
- Ieu num inxistu, fio.
- Inxesti sim sinhô. Iscrisive apareceu que neim arma penada nu meio dessa fumaça velde.
- Acauso lhi fiz mau?
- Num feiz mais vai fazê. Padre Arvim mi falô das sua artimanha.
- Agora ocê mi tirô do sério. Falá im padri na presença de minha pessoa é disafôro disaforado. Vou to ti levá pras profundeza dus inferno, seu titica de galinha.
- Antão qui seji. Mais iantes vô apelá pra minha madrinha, pé de cabra:
Valei-me minha Nossa Sinhora do Livramentu.
- Perfume de rosas, uma nuvem branca e a Compadecida esconjurou o tinhoso que, praguejando, sumiu do mesmo modo que apareceu.
Sebo nas canelas, Vicente chegou na Fazenda do Formoso antes que o estimado leitor soletre Amém.
- O carrilhão da sala soou sete horas. Ato contínuo Vicente foi cercado na cozinha pela criançada para os causos de assombração.
- Hoji num tein causo. Acabei de incontrá o diabo lá na Figuêra.
- Conta, conta, conta...
- I si eli aparecê proceis qui neim eli apareceu pra ieu?
- Aí ocê dormi no nosso quarto e acode nóis si o demu aparecê.
- Vossa vó num a di deixá...
- Vóóóó... O Vicente pode durmi no nosso quarto?
- Que que isso?!...
- Eli incontrô co diabo lá na figuêra inda agurinha,vó. A genti qué ôvi os causo de assombração, mais tamus cu medo.
- Oceis acreditaram?... O diabo num existe, meninada.
- Intão causdiquê a sinhora reza todo santo dia pidinu pra São Miguel cabá ca raça deli?
- Vicente... ô Vicente... Põe um colchão lá no quarto das criança. Mais só hoje. E vê se amanhã ocê põe uns anjos nos causos.
No oratório da sala, um doce aroma e Nossa Senhora cercada de rosas brancas.

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