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16/03/2015

Meu pai, Reginaldo Babo de Carvalho, foi um moleque endiabrado. As suas artes e "ofícios" foram por ele a mim relatados com a minúcia de detalhes que caracterizavam os seus comentários e opiniões.
Pai criado solto na Fazenda do Formoso, em Oliveira Fortes(MG), uma pequena cidadezinha a 24 Km de Santos Dumont e ligada a esta pela saudosa Estrada de Ferro Central do Brasil.
Pai era filho do Coronel Francisco Ferreira de Carvalho, apelidado Chico Marciano - chefe político da região, felizmente respeitado mais por sua retidão e conduta exemplar do que pelo jugo e mando típicos dos antigos oficiais da Guarda Nacional.
Pai foi educado por um renomado professor de Oliveira Fortes que prestava seus serviços de mestre às famílias mais abastadas da cidade. Desse modo concluiu o primário. Naquele tempo, apesar da criança não ter frequentado uma escola pública, feito um teste de avaliação e aprovado o aluno, o curso primário era reconhecido, habilitando o jovem a ingressar no ginásio.
Assim sucedeu, mas pai ficou até os 18 anos em Oliveira Fortes. Nesta idade e depois de mil estrepolias, em 1938 vovô resolveu interná-lo no ginásio da conceituada Academia de Comércio de Juiz de Fora - escola de Padres Redentoristas até hoje em atividade.
Após situá-los no contexto geográfico, vamos adiante.
Pai era o líder da molecada. Sua turma era composta pelos filhos dos agregados da fazenda de vô e de mais alguns moleques de sua corriola da cidade.
Entre todos os seus amigos, um era especial: Geraldo Rosa, filho de Zé Rosa, preto velho agregado de vô, e de Maria do Céu. Zé Rosa era um homem nas suas últimas encarnações, posto que rivalizava com os anjos em candura e mansidão. Maria do Céu foi ama de leite de pai.
Na condição de amigo do peito de pai, Geraldo Rosa era sempre o escolhido para ser o parceiro principal e o imediato em comando nas aventuras mais emocionantes e também para ser, digamos, a cobaia nas experiências do "mui amigo" Reginaldo.
Assim, depois de um dia de brincadeiras sem muita graça, pai teve a brilhante ideia de abrir um consultório de dentista, penalizado com o estado lastimável da dentição dos amigos em geral, e de Geraldo Rosa, em particular. Geraldo estava com os dois pré-molares abertos e vivia se queixando que a cera à base de cravo não estava mais aliviando as suas dores de dente.
Pai pegou emprestado uma a melhor cadeira de vó - uma com apoio de braços trabalhados, mandou os amigos clientes fazerem uma armação de bambu verde amarrados com embira e cobriu o quadrado com algumas colchas "emprestadas" por vó. Prontinho...o gabinete do dentista Reginaldo estava nos conformes. Agora era só marcar as consultas no caderno que ficava com o amigo Sebastião Caridade, honrado, entre muitos, com o cargo de Recepcionista do Consultório.
Para não sobrecarregar o Cirurgião-Dentista com providências burocráticas, pai determinou que Zé de Oscalino providenciasse o instrumental necessário: uma pequena bacia de alumínio que deveria ser elevada por um suporte de taquaras e ficar ao lado da cadeira(cuspidor), colher, chave de fendas, alicate comum; outro de tirar cutículas, uma agulha de costurar sacos de aniagem, linha de costura grossa, algodão, álcool e algumas gases. O mais importante pai providenciou: uma caixa de fósforos e VELAS.
O instrumental preparado pelo Cirurgião-Dentista Reginaldo Babo de Carvalho precisava ser pelo menos semelhante ao do dentista ambulante que de vez em quando aparecia na Fazenda do Formoso, convidado por vô para atender aos da casa, bem como aos colonos necessitados.
Este instrumentos, diga-se, eram apenas peças do cenário. Para a tranquilidade das clientela, foi avisado que os outros só seriam usados em caso de extrema necessidade. Importante mesmo eram a caixa de fósforo e as VELAS.
Geraldo Rosa foi o primeiro a ser atendido. Pai fez questão de que o amigo fosse o cliente número 1, encabeçando o caderno do recepcionista Sebastião Caridade.
Geraldo Rosa, acomodou-se na cadeira, abriu a boca com a bochecha tremendo e pai introduziu a colher afastando a língua do amigo. Mão no queixo, pensativo, avaliou a situação e disse que o problema eram dentões lá do fundo. Acendeu a vela, esperou até o espermacete escorrer e pingou a cera quente bem no meio do buraco do dente de Geraldo Rosa. Era o tamponamento para fechar o dente agora recuperado.
Geraldo Rosa, como se tivesse uma mola na bunda, projetou-se da cadeira aos berros e, para azar de pai, atravessou o terreiro dando de cara com vô. Esclarecida a situação, pai tomou uma surra de relho e o Consultório do Dr. Reginaldo Babo de Carvalho foi fechado precocemente pela CRO do Cel. Chico Marciano, justamente no dia de sua inauguração.
Pai não se conformou e para o dia seguinte programou um concurso de peido na vela.
Mas isto é outra história.

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