A VISITA DO BISPO
(Estória verdadeira com pinceladas de ficção)
Oliveira Fortes nunca se preparara tanto para uma recepção quanto esta para receber o recém-empossado Arcebispo de Mariana, Don Oscar de Oliveira.
O prefeito, o padre, o delegado e demais proeminências perfilavam-se elegantes, tanto quanto possível, em seus rústicos ternos de brim, reluzentes, aqui e ali, por efeito de ferros de brasa.
Em primeiro plano destacava-se a figura alta e imponente do Coronel Chico Marciano - líder político de Oliveira Fortes e redondezas.
Do alto de seus 90 anos, contemporâneo e amigo íntimo do velho Bias Fortes - primeiro governador republicano de Minas Gerais e fundador da nova capital, Belo Horizonte -, o vetusto coronel esfregava as mãos, impaciente, na expectativa do apito da maria fumaça lá pros lados de sua fazenda, a poucos mais de 1 quilômetro da cidade.
Tudo a contendo, esquadrinhado pelo olhar arguto de Chico Marciano, agradava-lhe, particularmente, o tapete vermelho encomendado em Juiz de Fora, tal qual uma artéria encarnada entre os retângulos formados pela criançada do Grupo Escolar naturalmente nomeado com o seu nome: Francisco Ferreira de Carvalho.
A bandinha atacou um dobrado, ato contínuo à revoada de bandeirolas brancas e amarelas agitadas pelas garotada.
Flores silvestres em arranjos e guirlandas quebravam os ângulos duros da arquitetura impessoal da estação. Aromas suaves abrandavam os suores de boa aflição.
Tudo perfeito. A estação repleta de gente, música, alegria, cores, pompas e circunstâncias garantindo um visual e um clima
que inspiraria pintor naif a transpor para a tela o festivo cenário caipira.
Um apito soou ao longe. Pouco a pouco foi crescendo o tham tcham tcham da maria fumaça. Um frisson percorreu espinhas e nucas bem delineadas por Juquinha barbeiro.
Marreco, simpatia encarnada maquinista 7 fitas, não poderia ter feito melhor ao atacar a curva que antecede a pequena reta da estação. A composição apontou feito tropa desembestada.
Marreco queria impressionar, e impressionou de com força.
Dosando a frenagem com todas as delicadezas, Marreco matutava: "Se freio a maricota na marra, o bispo dá com os cornos no chão" - sorriu matreiro.
A banda regida por João Dulce (um virtuose do sax alto relegado ao ostracismo caipira) tocou uma peça sacra sabidamente do agrado de Don Oscar. A afinação perfeita fez jus à fama da lira municipal.
Coronel Chico Marciano adiantou-se para postar-se ao lado da escada o vagão de primeira classe. Olhares reluziam de expectativa. Don Oscar desceu com elegância e espontânea solenidade.
Dom Oscar aparentava uns 50 anos, se tanto. Homem de boa estatura, bem apessoado, simpático, sorriso franco, de imediato ganhou a simpatia de todos, particularmente das beatas, balzaquianas, senhoras e senhoritas, estas a desnudar pensamentos com sorrisos um tanto ao quanto, por assim dizer, entre as virtudes do céu e as profundezas do inferno.
Suprema afirmação de autoridade, Chico Marciano apenas cumprimentou o Arcebispo. Mão firme apertou a outra eclesiástica a ostentar anel episcopal beijado e quase lambido pelo povo após sucessão de genuflexões e reverências.
Após os breves discursos, conforme recomendação de Chico Marciano, a comitiva rumou para a Fazenda do Formoso, residência do velho coronel.
O ajantarado, lá pelas tantas da tarde, ostentava visuais e aromas numa orgia em que a gula era pecado e os sabores indulgência. (Acredita-se que a tentação da culinária rural mineira tenha o beneplácito do céu).
Servia-se a sobremesa quando Lourdes passou para a cozinha carregando alguma coisa coberta por um alvíssimo pano branco. Parecia um vaso baixo. Daí a pouco voltou com o mesmo vasilhame. Foi e voltou algumas vezes até que, intrigado, o coronel interpelou-a:
- Lourdes, minha filha, o que é isso que você leva pra lá e pra cá, feito uma barata tonta?
- É o xixi do o do sô bispo, coroné. Que cô faço quêli?
- Bebe, Lourdes, bebe... é que nem água benta.
Riso geral, com destaque para a sonora gargalhada de Don Oscar que, em seguida, em um gesto que tocou a todos, candidamente abraçou-a e lhe beijou a testa.
Lourdes tinha uns 40 anos. Negra, solteirona, baixinha, era uma alma santa, uma beatitude entre a inocência das crianças, a pureza de um riacho e o canto de pássaros.
Mais de uma vez fora flagrada deixando os netos pequenos do coronel brincar com o braseiro do fogão a lenha, bulir com facas e outros apetrechos perigosos.
Após o rega-bofe, Lourdes foi para o seu quartinho ajeitar-se para a missa solene de logo mais.
Ajeitou o pixaim para depois domá-lo com a indefectível redinha. Vestiu o seu vestidinho de chita estampado, pegou sua sombrinha (fizesse sol ou chuva), o missal, mesmo que fosse à venda. Em seguida, o potinho de carmim. Desenhou duas rodelas vermelhas sobre as bochechas negras que resultaram dois hematomas à guisa de maquiagem. Arrematando o visual, como de costume, calçou o sapato direito no pé esquerdo e o esquerdo no pé direito.
O largo da igreja fervilhava. Lua cheia humilhava a ridícula iluminação gerada na usina do Piau.
Após a entrada do Coronel Chico Marciano e autoridades, o povo adentrou na casa de Deus disputando, com modos, os bancos insuficientes para a multidão.
Dona Saló ultimou os detalhes tirando o tom para a afinação do coral - vozes comuns em sua maioria, à exceção de seus filhos e filhas que o abrilhantavam com vozes afamadas na região.
Tudo nos conformes, o coral cantou "Adeste Fidelis" tocando corações e mentes.
O silêncio após os cânticos fazia um pigarro soar incomodando.
Naquele tempo a fé era contemplativa certeza e as orações brisa a conduzir delicadamente, como pétalas de dente-de-leão, as preces para para o céu.
Rostos marcados pelo tempo, pela lida diária no campo, sol a sol, iluminavam-se com aquela fé simples e incondicional. Sem constrangimentos lágrimas escorriam pelos leitos de rugas como diamantes de pura sensibilidade.
Padre Alvim, bom de festa e simpatia, pediu a atenção de todos e em breves palavras destacou as honra de receber Sua Excelência Reverendíssima, Don Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana. Um burburinho revelou a boa acústica da igreja.
Precedido por coroinhas, Don Oscar, devidamente paramentado, cabeça baixa, humilde, percorreu o corredor central até altar.
Cajado na mão direita, mitra e cruz de ouro com bela pedra encarnada ao centro, o Arcebispo era um deslumbramento para os fiéis acostumados à parcimônia das vestes sacerdotais de Padre Alvim.
A cada fileira de bancos, como que ensaiado, cabeças abaixavam-se reverentes à passagem do Arcebispo em sua paciente peregrinação até o altar. Olhares maravilhados.
A missa solene (em latim) teve início.
Don Oscar cumpria o ritual transitando pelo altar com uma suavidade incomum. Pendulares, os turíbulos nublavam a nave de incenso. Tivesse a fé um cheiro, aquele seria o seu aroma. Gente humilde, em sua maioria, cabeças baixas vergadas por respeito e culpas veniais.
Após o evangelho, Don Oscar fez a prática com a humildade de um franciscano. Todos entenderam o sermão. Destoava um ou outro resmungo de Oscalino com suas pretensões intelectuais e trejeitos de nobreza, inconformado com a escassez de termos eruditos, como convinha a um Arcebispo dispor do vernáculo.
Lourdes, boca aberta, não tinha a menor dúvida: Aquilo não era um homem...Era Deus em pessoa ali no altar. Como pode um ser vivente ter aquele brilho e aquelas cores? As pessoa num atina" - matutou Lourdes. "Era Deus, decerto... I como não havera de sê, si toda a cidade tava lá? Tiranu us doente i os mortu qui já morreru, coitadus, tava todu mundo lá... Inté coroné Chico Marciano, qui num ricibia neim u tar di governadô na estação, a pois num tava lá?
Era Deus, sim sinhô"!
Graça alcançada - pensou Lourdes. Segredo só dela, pois toda noite, em suas orações, pedia ao Senhor que se deixasse ver... um tiquim que fosse.
O deus de Lourdes era daquele jeitim, sem tirar neim pôr: um Pai do céu maduro, cabelos grisalhos. Um deus alto, mas não muito, "amodi qui Eli num tinha essas vaidades i num pricisava di artura. Arto qui seje u céu. Num pricisa mais...
E tem mais - pensava Lourdes lá com os seus botões: "Deus é bão, é alegre si ri di tudu, qui neim Eli riu pras criança quandu desceu du treim lá na istação. Eli, iscruvise, tratava todu mundu inguár - inguár Eli tratô ô coroné , ô prefeito i ô delegado i inté ôs trabaiadô tudu.
Era Deus. "Qui mané seu bispo qui nada. I Eli veiu di treim só pra si adivertí qui neim us mininu. Nu tempo Dele num tinha treim pra Eli vê us vagão intortá na curva i vê as coisa passanu ligerô na jinela".
Riso agarrado na cara, Lourdes ria para todos bem na hora da consagração. Nem te ligo, e continuou sorrindo aquele sorriso que os anjos reconheciam.
Bein qui pudia apagá a luiz - pensou. Lourdes imaginava o céu à luz de velas e com cheiro de incenso.
Não mais do que de repente, a luz se apagou, acendendo, de imediato, o sorriso de Lourdes. A usina do Piau não era chamada de vaga-lume atoa.
Mística penumbra de castiçais desenhava sombras com jeito de almas penadas.
Lourdes persignou-se com um pelo-sinal exagerado, mas logo se recompôs ajeitando, ponta de dedos, a redinha sobre o pixaim.
Don Oscar continuava a missa. Seu vulto à luz dos castiçais maiores do altar, aos olhos de Lourdes irradiavam auras e resplendores. Don Oscar e Padre Alvim davam a comunhão. Em fila, após o Coronel Chico Marciano, a comunidade recebeu o Senhor dos Céus e de todo o firmamento.
Lourdes, no fim da fila, timidamente arrastava seu passo miúdo. Seu rosto pequeno sumira sobre o véu.
Ninguém entendeu quando Don Oscar, como que hipnotizado, vacilou por uma pequena eternidade antes de dar a comunhão à Lourdes. Muito menos entenderam o seu rosto transfigurado.
Altas horas, insone, Don Oscar balbuciava preces com a voz trêmula. Lágrimas gotejavam sobre o crucifixo de ouro. Rosto lívido, mãos trêmulas envolvidas pelo terço - um cipoal de contas não mais marcavam a passagem de Ave Marias e Pai Nossos. Tivera uma visão que faria de sua fé, dali em diante, uma pedra mais sólida do que aquela sobre a qual São Pedro edificaria a Igreja de Nosso Senhor.
Do nada, sem efeitos especiais e pirotecnias, um anjo majestoso adiantou-se ao Arcebispo e deu comunhão ao anjo negro e miúdo ajoelhado a seus pés.