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07/01/2020

FERNANDO ANTONIO DE CARVALHO

Relato impressionante da Batalha de Canas, na qual Aníbal Barca derrotou as legiões romanas de Varro, na segunda guerra púnica. Verdadeira aula de história e estratégia, a batalha em questão é relatada em toda a sua crueza, com detalhes que demonstram a brutalidade da luta corpo a corpo e a coragem sobre-humana exigida dos soldados daquela época. O texto é longo pelos padrões do Face. Ainda assim recomendo sua leitura. É fantástico.

Eu, Anibal", de Juan Eslava Galán, Editora Mercuryo, São Paulo, Brasil
A Batalha de Canas
No futuro, quando contarem sobre hoje, lembrarão como era clara, límpida e quente esta manhã de 29 de Julho.
Não sei como, lá, chamarão a minha época. Se me perguntassem qual a definição dos dias em que vivo, diria que já não estamos mais no começo. Já aprendemos a fazer a política e a guerra.
Somos Legionários , eu e oitenta mil iguais a mim, convocados e treinados para combater, derrotar e expulsar da nossa Itália o mais odiado inimigo.
Para nosso infortúnio, enfrentamos o mais hábil estrategista que ousou desafiar o nosso império. Deixou sua cidade na África, aportou na Espanha, de onde rumou para oeste, e atravessou os Alpes com guerreiros, cavalos e elefantes.
Nos atacou pelas costas ardiloso, sutil e covarde.
Milhares já pereceram dando-lhe combate; um terço da Itália está em seu poder, e ele quer, coroando sua marcha sangrenta, cruzar as portas de Roma , para estuprar e escravizar nossas mulheres, degolar nossas crianças e crucificar os homens que não morrerem pela espada.
E no frenesi da orgia, do saque e da matança, alguém ateará o fogo que incendiará o Senado, os mercados, as bibliotecas, as escolas, os banhos, as praças, as casas e os campos.
Triunfante, ele cobrirá com sal tudo o que fomos ou significamos, para que mais nenhuma semente floresça, e em pó se transforme a civilização Greco-romana .
Ele é Aníbal , filho de Amílcar Barca, de Cartago . Vem até nós como o filho que se espelha no pai, para superá-lo como guerreiro, e vingá-lo com a nossa destruição.
Um exército de trinta e cinco mil homens está trezentos metros a nossa frente. Uma massa fedida composta por Cartagineses, Númidas , Celtíberos , Gauleses e Líbios .
Uma horda de bárbaros, sujos, rotos, barbudos, com olhos arregalados, respiração acelerada e suor frio escorrendo no peito; admirados com a beleza das Legiões Romanas , com os quadrados vermelhos que as Coortes desenham na pradaria, com o brilho das malhas metálicas, com os penachos coloridos dos elmos sacudidos pela marcha; com a harmonia do movimento da bela criatura, esguia, assassina mortal.
Temem o fio do gládio e a ponta do pilum . Conhecem nossa coragem, já aprenderam sobre o prazer que sentimos em matar, e já descobriram que não tememos morrer.
Assim que soarem as trombetas, combateremos até que não sobre, do menos favorecido dos lados, alguém que ainda respire.
Os Deuses determinarão de quem será a justiça do dia, se de Roma, defendendo sua civilização que durará talvez mil anos, ou Cartago, invasora vil e traiçoeira.
Estamos aos pés do Monte Canas, às margens do Rio Aufidus.
Acordamos bem cedo, e comemos as porções da manhã e da tarde. Todos estão sorridentes e confiantes. Temos quase tudo o que alegra e estimula um soldado antes da refrega: o estômago cheio, as armas limpas e afiadas, o treinamento aprendido, a certeza da superioridade numérica, e a esperança de se apossar do rico butim que, neste caso, é o tesouro que o exército cartaginês acumulou saqueando esta terra.
Em suas orações aos seus deuses familiares, muitos leram os nomes dos parentes que pretendem vingar. Ungi com puro azeite minha estatueta de Júpiter , e disse-lhe que me contento em sobreviver, sem ferimentos graves, depois de matar muitos inimigos. Pedi-lhe que proteja meus amigos e companheiros de armas e, caso seja de sua vontade a minha morte, que impeça que o invasor chegue às portas da minha casa.
Quando sai da minha tenda, lembrei-me de um episódio ocorrido algum tempo atrás. Prestava serviço na África, onde era comum viajarmos longas distâncias em busca de novidades ou de mulheres. Uma noite, acampado em uma savana, assisti uma matilha de hienas cercando um leão velho, doente e indefeso. Elas rosnavam, ameaçavam, e, uma a uma, atacavam, mordiam, cravando os dentes em seu corpo, para sangrá-lo até que não pudesse mais resistir, e depois começar a comê-lo ainda vivo.
Todas as oito legiões receberam ordem de se colocar em formação de batalha. Sou Centurião da 1ª Centúria da Quarta Legião. Comando oitenta homens. Somos a ponta do punhal que penetrará o coração do inimigo, e o golpeará até que todo o seu sangue escorre e penetre na nossa terra, para que ela também saboreie o gosto da aniquilação dos que vieram usurpá-la.
Percebo que o cartaginês foi hábil na escolha do terreno. Uma das suas maiores virtudes é saber escolher onde combater. Apoiou as costas das suas linhas no rio, o que dificulta qualquer manobra de cerco da nossa cavalaria.
Por capricho, ou para melhorar o equilíbrio entre as forças, os Deuses colocaram o vento a seu favor.
O sol bate diretamente em nossos rostos. Viro-me e mais uma vez me encanto com a visão da colcha de estandartes vermelhos e elmos prateados que sobe detrás de mim até o topo do monte. Elmos que envolvem cabeças de homens de feições rudes, e expressão tensa e concentrada. Os mais próximos, conheço-os todos pelo nome.
Cláudio, Centurião da Centúria que me segue, dez metros atrás, me deve alguns denários de uma dívida de jogo. Lúcio, beberrão, conhecido e festejado nos bordéis da cidade, que na legião é modelo de disciplina e coragem. Túlio, que sorri para mim e bate com o dedo nos dentes da frente, indicando que hoje colocará mais alguns dentes de ouro em seu colar. Paulo, que luta ao meu lado e que prometi defender com minhas armas, filho de um amigo de meu pai, que morreu na Primeira Guerra Púnica .
Augusto, Tito, Domiciano, Adriano..., todos amigos, camaradas, companheiros, conhecidos, patrões, empregados, pais, filhos, tios e primos. Quantos deles não verão o final do dia?
Atrás das legiões, no alto do monte, identifico Caius Terentius Varro, o carniceiro. Ganhou a eleição para Cônsul prometendo exibir o cadáver do cartaginês desmembrado e pendurado nos ganchos do seu açougue.
Pena que neste dia crucial seja ele o comandante supremo. Fosse ontem, ou amanhã, e teríamos Aemilius Paulus. Nunca entendi a razão de alternar-se o comando de um dia para o outro. Suspeito que nossos inimigos vejam com estranheza essa nossa prática.
Observando nosso comandante montado em seu cavalo branco, vestindo sua couraça de couro decorada de ouro e prata, cercado de oficiais, empavonado e exibicionista, temo que, hoje, o comando seja nosso ponto fraco.
Varro colocou as oito legiões no centro do campo, com as respectivas cavalarias divididas em dois esquadrões, protegendo ambas as alas. Conseguiu transformar nossa inquestionável superioridade numérica em obstáculo, pois reforçou tanto os manípulos que diminuiu o espaço entre as centúrias e as coortes, comprometendo a mobilidade, razão primordial da nossa eficiência em combate.
O inimigo colocou seus batalhões formando uma cunha. Na sua ponta, mais próxima das nossas linhas, gauleses sujos e nus, e guerreiros celtiberos, reconhecidos pelas curtas túnicas pintadas de vermelho. Agitam no ar suas falcatas , espada terrível de cume côncavo próximo a empunhadura e convexo na ponta, poderosa como um machado, capaz de arrancar braços ou decepar cabeças com um só golpe.
Sua infantaria pesada está distribuída nos lados da cunha, formadas em profundidade e dispostas à maneira da falange grega , compactas e com lanças fortes, longas e afiadas.
A cavalaria númida protege sua ala direita, e cavalarianos celtíberos sua ala esquerda.
Na reserva, deixou um quarto dos seus homens, em formações de batalha semelhantes a romana.
Todos estranharam a disposição do exército inimigo no campo, mas não recebemos nenhuma instrução específica, além da de lutarmos como sabemos, indo em frente, atacando e retalhando sem descanso, ora soltos como os dedos da mão, ora juntos como o punho cerrado.
Lentamente, as linhas de frente dos exércitos se aproximam; agora apenas trinta metros nos separam. Ouço cânticos, orações, palavrões e risadas. Soam as primeiras trombetas.
Os velites se destacam e lançam seus pilums. Em resposta, um harmônico zumbido prenuncia a chuva de invisíveis bolotas de chumbo que cai sobre nós, arremessadas pelas fundas de centenas de fundistas baleares , mestres no seu manejo.
Vejo que uns cinqüenta dos nossos caem feridos de morte, com a cabeça destroçada pelo projétil.
Soa novo toque de trombetas, anunciando aos Deuses nossa oferenda.
Algumas dezenas de jovens, das melhores famílias romanas, ligados pelo juramento do sacrifício, atravessam o campo em passo de carga, lançando-se na direção do inimigo. Vestem uma leve túnica branca e estão armados apenas com lanças, sem couraça ou escudos. Dão a vida aos Deuses para que, em troca, nosso inimigo pereça. Nenhum deles chega ao seu objetivo. Caem atravessados por dardos ou atingidos pelo chumbo certeiro das fundas. Esperamos enquanto agonizam, até que o último deles morra.
Soam novamente nossas trombetas, desta vez chamando-nos para o encontro com o destino.
Atrás das linhas inimigas, o estandarte dos Barca, que tem o raio fulminante como símbolo, é agitado. Ouve-se um clamor e gritos de guerra de diferentes nações ecoam no ar.
A batalha começa.
As primeiras linhas arremessam seus pilums e quase ao mesmo tempo recebem uma carga de dardos e bolotas de chumbo. Gritos de dor. Corpos caem. A cabeça de Paulo, o soldado à minha esquerda, explode em sangue; ele olha para mim com seus olhos fora das órbitas, e com uma bola escura e ensangüentada encravada em seu rosto, onde antes era seu belo nariz romano. Cai morto aos meus pés.
De espada em punho, cerramos nossos escudos e suportamos a carga do inimigo.
Eles nos golpeiam de cima para baixo, desferindo com suas falcatas fortes golpes em nossas cabeças. Alguns escudos cedem, abrem-se ao meio e derrubam uma das suas metades, levando ainda presa na madeira a mão dos seus proprietários. Para estes o próximo golpe vem direto no pescoço, horizontal, lançando-lhe a cabeça no espaço, ou longitudinal, cortando o corpo do ombro até a altura do umbigo.
Uma linha de hastati desaparece totalmente, e mais uma está sendo vencida. Ordeno que os triarii avancem. Eles se aproximam das primeiras linhas e começam a estocar os inimigos, enfiando suas lanças por sobre os escudos, furando olhos, rasgando pescoços, entrando nas bocas abertas que gritam sem parar, mesmo depois de trespassadas.
Os inimigos sentem nossa reação. Forçados a levantar os escudos para evitar as lanças, ficam expostos aos gládios, que os cortam e retalham furiosamente, abrindo suas barrigas e expondo suas vísceras, que escorrem para o chão.
Tomamos a ofensiva e empurramos a massa humana inimiga, que cede terreno deixando um rastro lodoso e vermelho de sangue grosso, de membros decepados, e de metros de intestino quente e escorregadio.
Auxiliares da retaguarda recolhem nossos feridos e os levam para os primeiros socorros, que se resumem à sutura de um membro amputado, ou ao golpe de misericórdia que traz o privilégio da morte rápida.
Todas as centúrias que comigo atacam pelo centro estão mais ou menos intactas. Analiso alguns cadáveres de gauleses e celtíberos e vejo que não são soldados de primeira linha. A maioria é velha, com cicatrizes antigas, e a outra parte jovem demais. Estão aqui para serem aniquilados rapidamente.
Ordeno uma marcha mais lenta para tirar minha Centúria da linha e substituí-la pela de Cláudio, que faz minha reserva.
Executamos o movimento incontáveis vezes ensaiado, e legionários ainda relativamente limpos de sangue se apresentam para a batalha.
Faço a contagem com meus Decuriões e descubro que, na minha Centúria, ainda somos sessenta e sete. Ficamos de prontidão para a próxima manobra.
O som da batalha é alto e assustador como o trovão próximo e inesperado, que vem aumentar o pavor causado pelo raio. Instaura um sentimento de aflição e terror. Todos os pêlos do corpo se arrepiam e a mente, embebida em adrenalina, presta atenção nos detalhes de tudo que acontece ao redor.
Escudos contra escudos, lâminas contra lâminas, bestas contra bestas. Homens lutam como feras selvagens protegendo suas ninhadas.
Um legionário agachado ao lado de outro cobre-se com seu escudo e decepa pés e pernas com seu gládio. Não percebe que o companheiro que o protege é abatido e continua avançando, saindo da formação. É rapidamente envolvido por três gauleses, que o retalham a golpes de espada e jogam seus pedaços sobre nós.
Avançamos cortando a massa de bárbaros como a faca afiada corta a carne do porco. Passamos sobre seus cadáveres, com o cuidado de degolar ou atravessar com a lança todos que ainda tem a cabeça presa ao pescoço. Senão, podem acordar do sono da morte para um último ato, e levar alguns dos nossos com eles.
Dois legionários suportam com seus escudos o peso de vários celtíberos; separam os escudos subitamente e os triarii enfiam suas lanças no espaço aberto, empalando vários deles.
Um triarii tem dificuldades para se livrar de uma cabeça atravessada pela sua lança. Um legionário a separa do corpo e ela se torna mais um horrendo estandarte na infernal celebração.
Este é o espetáculo que o meu tempo apresenta: dois monstros paridos por duas civilizações se golpeando e se destruindo; lesmas gigantes de muitas pernas e pêlos metálicos e pontiagudos, derramando sua gosma nojenta de carne e fezes humanas.
Como será no futuro? Será que ainda resolveremos nossas questões a fio de espada? Será que seremos capazes de levar o homem ao seu pleno entendimento? Será que colocaremos a razão, culta e iluminada, como medida para as coisas?
Talvez sim..., talvez nunca.
Quando a última civilização perecer sobre as cinzas da penúltima, o planeta vai se ocupar, sem a mínima pressa, em providenciar o nosso esquecimento.
Quanto tempo dura uma batalha? Não sei.
Não o percebo..., como poderia medi-lo?
Não sei quantos gritos já dei..., quantos vi morrer, quantos matei...
A garganta está seca e quente como a areia do Saara; os músculos doem..., mas não perdem a coordenação.
Minha mão escorrega do punho da espada, encharcada por uma lama pegajosa, cor de cobre, mistura de sangue e terra.
O espírito dos homens foi capturado pelo feitiço da Deusa Morte, e trazido até este lugar para, em homenagem a ela, encenar o ritual da aniquilação.
Para essa deusa, o tempo não importa.
Gritos de dor lacerante e de bravura enfurecida vêm da linha de frente, onde a minha batalha acontece; mas outros gritos começam a vir dos lados e de trás de mim.
Viro-me e vejo no alto um arremedo da cavalaria romana fugindo desesperadamente, perseguida por um pelotão dos pequenos e ágeis cavalos da cavalaria númida. O estandarte de Varro desaparece do outro lado do Monte Canas. Entendo agora o ardil.
Nosso avanço rápido destroçando batalhões de segunda categoria afundou a ponta da cunha de uma forma que a linha dos inimigos, que era convexa, tornou-se côncava.
O incompetente Varro, vendo que avançávamos, colocou todas as reservas no centro, nas nossas costas, e não as direcionou para as alas, o que permitiu que a infantaria pesada cartaginesa, disposta mais nos flancos, resistisse e cedesse terreno calculadamente, empurrando as legiões para o centro de um bolsão. A cavalaria celtíbera ataca a nossa retaguarda. Caímos na cilada.
As oito imponentes legiões romanas estão como o velho leão, cercadas por hienas famintas.
Ordeno a minha Centúria que pare e recue, mas não consigo me mover. Pressionados, lutando em quatro frentes, começamos a ser esmagados em nosso centro.
Lanças e dardos caem entre nós, invariavelmente atravessando um alvo. O silvo das bolotas de chumbo é rápido, e seguido pelo barulho do metal amassado e do grito de dor. Para qualquer lado que olho, vejo homens caindo em agonia.
Os legionários começam a entender a situação. Mostram em seus rostos a compreensão do momento da própria morte. Não há medo, apenas resignação. A missão divina que os Deuses nos deram, morrer pela glória de Roma, está chegando ao fim. Sentimos pelos que nos esperam, preocupados, com o coração apertado. Mas encontramos conforto pensando nos que partiram antes e agora reencontraremos, para longas conversas à sombra das videiras, comendo damascos e bebendo vinho.
Porém, lembro-me ter pedido a Júpiter para que minha batalha não terminasse assim.
Se continuarmos em frente, concentrando tudo o que tempos, poderemos romper este lado da linha inimiga e chegar até o rio, criando uma possibilidade de fuga. Grito aos oficiais próximos e conseguimos coordenar o que resta da nossa legião.
Surgem então batalhões de líbios e cartagineses, melhores e mais bem equipados, que faziam a retaguarda dos gauleses e celtíberos, e estão dispostos a aumentar nosso martírio.
Pressionados pelas costas somos empurrados para suas lanças. Muitos morrem em pé, transpassados. Lúcio sai da formação sem seu escudo, e imediatamente várias lanças o atravessam. Com a força de um urso agarra-as com os braços e as segura, abrindo um clarão na frente inimiga. Morre abraçado às lanças como viveu abraçado às mulheres, sorrindo. Ordeno aos meus legionários que me sigam pela brecha aberta por ele, e conseguimos chegar ao combate corpo a corpo com os africanos.
Golpeando com o escudo e cortando com o gládio, seguimos decepando qualquer pedaço de gente que apareça sob o fio das nossas espadas. Mais legionários se juntam a mim e pressionamos até que, inesperadamente, um clarão se abre, e vemos, distante algumas centenas de metros, o rio que será nossa salvação. Corremos até ele em fuga desordenada.
Sinto uma profunda tristeza e choro enquanto fujo, mas não há mais glória em morrer nesta batalha. Preciso sobreviver para tentar melhor sorte da próxima vez. É o desejo dos Deuses para mim.
Deixo minha malha, meu escudo, meu elmo e minha espada na margem e me jogo no rio. A água está vermelha e tem gosto de sangue. Nado com todas as forças que me restam e chego ao outro lado. Não há tempo para descansar, empunho meu punhal, pronto para me defender, mas não há necessidade.
A margem está cheia de legionários e cavaleiros sobreviventes. Todos estão imóveis, hipnotizados, olhando para o inferno que deixamos para trás.
Lá, os bárbaros já não gritam. Agora riem altas gargalhadas, dançam e festejam a maior derrota já vista desde a queda de Tróia.
Uma massa prateada e vermelha de romanos é esmagada, diminuindo cada vez mais, na medida em que o círculo se fecha.
Felizes, se revezam na carnificina. Os que saem para descanso saqueiam os cadáveres. Roubam deles tudo o que pareça ter valor, arrancam seus dentes, decepam suas orelhas, furam seus olhos. No final, os decapitam e jogam as cabeças no meio do redemoinho, para os ainda vivos verem o que lhes aguarda.
Aníbal aparece e fica próximo aos seus homens, orgulhoso do resultado da sua obra, e é saudado pela turba banhada em nosso sangue.
Alguns oficiais o cercam e apontam em nossa direção, mas não recebem a ordem para a perseguição. O cartaginês nos quer vivos.
Somos as testemunhas que levarão sua mensagem, e contarão da humilhação e do horror a que fomos submetidos.
Ele espera que choremos desoladamente pelos nossos mortos, que o desespero invada nossas casas e o medo se aposse dos nossos corações.
Nas não Aníbal, isso não vai acontecer.
Vamos honrar nossos mortos com nossas dores, e nos levantaremos e criaremos uma máquina de guerra ainda maior, que você não poderá vencer.
Faremos sacrifícios aos Deuses, imolando nossos recém-nascidos. Cortaremos da própria carne os pedaços que forem necessários, e você, e todos os que contarem ou ouvirem sobre o dia de hoje, saberão do que somos feitos.
Somos Romanos, somos o presente e o futuro, e nossa cidade existirá para sempre.
Mesmo que só reste a peste e a fome, nossa mãe em pele e osso nos alimentará com seus mamilos feridos. Somos os filhos da Loba.

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