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12/08/2019

Reeditando...
UMA BREVE HISTÓRIA, TALVEZ UM CONTO.
Seu Hadib selou o cavalo Saladino e a mula Poderosa. O cavalo ficou bonito por demais - arreio de couro de boa qualidade, lustroso, com manta colorida em cima da cela, barrigueira arco-íris, uma belezura.
A mula, não. Somente a cangalha e os dois grandes bornais de couro áspero. Ambos abarrotados de provisões, apetrechos e quinquilharias: pentes, carretéis de linha, dedais, retratos de santos, fitas, canivetes, lápis, esferográficas(novidade), tecidos, fitas coloridas, carmim e mais, muito mais.
Na garupa de Saladino, bem amarrada, duas mala grandes de papelão grosso, com os cantos protegidos por guarnições de latão. Encomendas especiais, coisas de valor, frágeis. E caras, bem mais caras: perfumes, água de cheiro, espelhos, bibelôs, bonecas de papel machê, terços de cristal etc etc etc
Bem o sol aprumou no topo da serra, seu Hadib tomou o rumo das fazendas, sítios e casinhas perdidas nos grotões, vales e campinas.
Saladino seguia aprumado, subindo e descendo serras, vencendo léguas e distâncias logo ali. Poderosa, cabeça baixa, cambaleante, arfava suada sob o peso das encomendas.
Quem é mineiro sabe que "logo ali" fica longe, mas nem tanto que não se possa alcançar. Longe fica o céu para quem não é merecendente.
Na boca noite seu Hadib desarreou os animais, acendeu o fogareiro Jacaré e esquentou a boia: um dia feijão tropeiro, o outro também. Frutas? Era só apanhar à beira das trilhas e caminhos. Quase nunca chegava nas fazenda a tempo de almoçar ou jantar.
Desta vez seu Hadib levava uma encomenda especial: uma dúzia de postais(15 x 25) de artistas de Hollywood. Todos coloridos em tom sépia, muito maquiados e com tez de boneca japonesa.
Victor Mature, Gary Grant, Jeff Chandler, Tony Curtiss, Errol Flyn, Rock Hudson, Robert Taylor, Robert Mitchun, You Brynner, Chalton Heston, Glenn Ford, e mais um, Rodolfo Valentino - este branco e preto. Valentino era do cast anterior, do tempo do cinema mudo.
Seu hadib, libanês, tinha o tino e o tirocínio dos fenícios. Observara que sua filha Fátima vire e mexe recebia os tais postais com carimbo do correio americano. Um dia, perguntou pra filha.
- Filha babai, onde ocê arruma esses bostal de artista?
- Escrevo pra Hollywood, pai, pros estúdios de cinema. Aí eles mandam os retratos dos artistas pra gente.
- Babai qué vê cartinha.
Fátima trouxe uma delas. Seu Hadib disse que ia dar uma olhadinha.
- Debois babai devorve brocê.
Dia seguinte, seu Hadid mandou a primeira carta. Assinou Maria das Graças Silva. Mês sim, mês não, chegavam os postais que seu Hadid guardava a sete chaves.
Matutava: os moça da cidade e os moça das fazenda vai combrá os redradinha de Hadib. Hadib vai bro praça e vende bros moça. Dibois nós vai bro roça. Roça tem moça rica nos fazenda.
Hadib recomendou que Fátima não comentasse com ninguém sobre os seus postais. Fátima perguntou por quê e Hadib desconversou nervoso.
- Bedece babai e bronto.
Os postais fizeram muito sucesso na cidade e em todas as fazendas onde haviam moças com algumas letras e pais que permitiam que as filhas fossem ao cinema - quando havia um por perto.
Rita aguardava ansiosa. Passara mais de um mês de sua encomenda. À tardinha dava plantão na janela da sala da Fazenda Esperança. Major Tibúrcio, seu pai, já andava implicado com aquela vigília.
A tarde caipira era um silêncio só interrompido por uma sabiá aqui, outra acolá. Um canto aqui e mais outro adiante: curió, canarinho da terra, bem-te-vi e outros sonorizando a calmaria com arranjos e harmonias.
Rita apurava o ouvido. A mula Poderosa tinha um chocalho no peitoral que à distância anunciava a chegada de seu Hadid. A qualquer momento o mascate apontaria na curva da estradinha.
Poucos dias depois, seu Hadib apareceu. Rita correu ao encontro do mascate.
- Trouxe a minha encomenda, seu Hadib?
Seu Hadib sorriu de orelha a orelha, contabilizando mentalmente os lucros polpudos a serem acrescidos com as novidades: outros postais de artista.
- Hadib num esgueceu Rita.
Mesa posta e farta, seu Hadib tirou a barriga da miséria. Major Tibúrcio punha gosto nas aparições do "turco". Ficava sabendo as novidades da política na cidade e se inteirava de outros assuntos do seu interesse.
No dia seguinte, bem cedo, seu Hadib despediu-se de Major Tibúrcio e de Rita. A moça acompanhou seu Hadib até a porteira.
- Olhe, não se esqueça das minhas encomendas.
- Bode fica sossegada, Hadib trais os encomenda.
Rita ficou ali parada até que o mascate sumisse depois da curva. Acenou e voltou correndo para o seu quarto. Rapidinho abriu o envelope. Um risinho aflito e uma exclamação. Deus do céu, era o Robert Taylor e aquele seu olhar verde penetrante.
Mão no queixo admirando o bonitão por minutos. Rita pegou os outros postais e os enfileirou em cima da penteadeira. Um ao lado do outros, todos com aquele meio sorriso de danar a alma.
Apagou a luz do quarto. Dormiu. Sonhava com algum deles. Ressonava. De vez em quando contorcia-se suavemente na cama. As mãos entre as coxas. Gestos inconsciente de abandono e carência. Sono profundo até o despertar para a mesmice e para todas as tristezas.

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