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05/06/2017

Henriette Granja
7 h
O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO
Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho, porque a família toda iria visitar algum conhecido.
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a visita.
Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... casa singela e acolhedora.
A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também.
Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida.
Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa... A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão.
Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, internet, e-mail, Whatsapp ... Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!... – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas.. Pra que abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite...
Que saudade do compadre e da comadre!...
Créditos: José Antônio Oliveira de Resende
Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei.
Comentários
Fernando Antônio de Carvalho Lindo texto: simples, comovente em sua triste realidade retratando uma época e um Brasil que não existe mais.O relato do professor é como um quadro, uma foto, um flagrante das minhas lembranças. Exatamente assim recebíamos e éramos recebidos. Sem essa de avisar. A hospitalidade antiga não tinha cerimônias. Cada visita era quase uma festa quebrando a doce rotina das cidades interioranas. Assunto não faltava e os dois de prosas excediam os dedos da mão. A mesa de café sempre à altura da visita de um bispo. A criançada normalmente já se conhecia, e quando não vinha a calhar, aumentando o círculo de amizades para a pelada, pique esconde, queimada, bolinha de gude, roda de cirandas, pular corda, bonecas de paina ou de pano. Sem falar na resenha esportiva dos moleques na calçada, todos os domingos comentando a rodada do campeonato carioca. De vez em quando a porrada comia, após "um ficar de ma" até a próxima rodada, quando os ânimos arrefeciam ou faltava quorum para novas "considerações". Em tempo, saudade, quase me esquecia das cadeiras na rua, por volta de 5 da tarde, quando a vizinhança botava o papo em dia e a criançada voltava às brincadeiras. Bons tempos sem as distrações modernosas e olhos vidrados em telas de alta definição. Bons tempos de um Brasil ainda rural, religioso, simples, ordeiro e pacífico. Tempos passados. Guardados e recuerdos. Caixas de veludo, baús. Tesouros.

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