Páginas

28/10/2019

CORDEL DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA (para não esquecermos...)
Na sala refrigerada,
em ambiente sofisticado,
garçons serviam uísque
no salão atapetado.
Um entra e sai de bacanas,
só doutor e advogado
e sobre a mesa o projeto
de um dique malsinado.
Toda lavra faz sujeita
e os rejeitos necessitam
de represa ou barreira
que contenha a porqueira
morro abaixo ameaçando
o pequeno povoado
ainda agora chorando
por seus mortos queridos,
por suas perdas e danos
e centenas de feridos.
A fumaça de charuto
em baforadas arrogantes
empesteava o ambiente.
Entre risos e piadas,
diretor e presidente,
dão sonoras risadas
com o governador amigo.
Clima de festa e nem te ligo
para o risco potencial,
pois dique que é dique
se rompe, e é até normal,
desde que se rompa
e a gente não esteja na rota
desta enxurrada do mortal.
Após o papo agradável
e tudo bem acertado,
o contrato assinado
e a reboque atrelado
a devida licença ambiental.
Toca a obra engenheiro
que a obra traz dinheiro
pro nosso bolso profundo.
Um pitaco de repente
quebrou o clima amigável
quando foi considerado
que o dique, por estável,
poderia se romper.
O infeliz palpiteiro
botando o dedo na ferida
votou contra o projeto
avisando que a vasão
correria pelo vale
em cima da população.
Sugeriu local mais seguro
onde a vazante do lixão
percorresse outro caminho
livrando a cara do povão.
Era só o que faltava...
Caras feias e irritação.
Quem é esse camarada,
palpiteiro infeliz,
que estragou o clima
falando tanta besteira
sem noção do que diz?
Fique o senhor sabendo
que a mudança de local
aumenta em muito o custo
desta obra fenomenal.
Vá procurar sua turma,
considere-se demitido.
Quem pediu o seu palpite,
seu idiota enxerido?
Acabou-se o que era doce
e cada um dos doutores,
respeitáveis senhores,
cada qual foi pro seu lado,
todos contentes da vida.
Dia exaustivo na lida.
Tolo quem se engana
achando que a vida é mole
só porque é vida de bacana.
O doutor engravatado,
empunhando o seu I-fone
logo chamou o motorista,
por acaso o Evangelista,
que mora em Bento Rodrigues.
E assim passou o tempo,
vida que segue,
dia e noite,
noite e dia.
O tempo segue ligeiro
e não espera por ninguém.
A criançada na escola
o almoço quase pronto
fumegando no fogão.
Maria lavando roupa
e José na plantação.
Retireiro tira leite,
seu Antonio abre a venda
e o padre na igreja
recebe as filha de Maria
em fila pra confissão.
Tudo nos conformes
na tarde quente e gostosa
e na santa paz do Senhor.
De repente gritaria
e uma moça de moto
vem berrando rua abaixo:
fuja ligeiro, minha gente,
que a represa estourou.
Correu pecador e devoto,
fugiu moça e o velho
cansado e estropiado.
O mar de lama estrondoso
entrou vilarejo a dentro
num cenário pavoroso
parecendo o fim do mundo.
De pé nenhuma casinha
e até onde a vista alcança
só se vê destruição.
Um silêncio de morte
e uma tristeza que dói
em mim e em todos nós.
Feliz de quem teve sorte
e escapou desta feita
por obra de Deus e Graça
da Desatadora de nós.
Agora é juntar os trapos,
catar a tralha que resta,
os farrapos, alguma coisa
que reste, ao menos uma veste
que nos cubra as vergonhas.
Deus que é pai nos acuda
e venha em nosso socorro
nesta hora de aflição.
Por muito pouco escapei,
mas tudo pra trás deixei
na hora da aflição.
Isso é coisa do tinhoso
que só apronta consumição.
A imprensa urubulina
farejou logo a carniça
e sem delonga e preguiça
garantiu a matéria
que gera muito anúncio,
ganhos na certa e prenúncio
de lucros de montão.
Enquanto isto no palácio
corre corre e providências
como sempre tardias.
Entrevistas arredias,
explicações e urgências
para ontem - só que ontem
as providências adiadas
certamente evitariam
as tragédias consumadas.
Minério e bom pra economia
isto ninguém pode negar.
Só não VALE desse jeito
do povão à revelia,
cavando buraco fundo,
sujando e enfeiando o mundo;
sem falar no rejeito
na lama e na morte,
no desprezo com a sorte
desta bom povo mineiro.
Deixa estar, poderosos,
um dia a conta há de chegar.
O passivo desta vida
será o vosso legado
pra próxima encarnação.
O ajuste de contas
há de fazê-los desditosos
diante da corte celeste.
No fim das contas o que VALE
é o bem que se fez nesta vida.
E no VALE das almas perdidas
havereis de lamber as feridas
que nunca cicatrizarão.
i

Nenhum comentário:

Postar um comentário