Reeditando a fantástica vida de minha vó materna - uma mulher muito (mas muito mesmo) à frente do seu tempo.

Fernando Antônio de Carvalho para 14-BIS
Nossas vós são um capítulo importante nos primeiros anos de nossa infância. Estórias, beijos e doces poderiam ser a definição de vó. Para mim, o melhor eram as estórias que raramente ouvíamos ao fim, apesar da tentativa de vencer o sono. O final feliz sempre ficava para o dia seguinte. Príncipes e princesas enfim juntos, bruxas e malvados recebendo o castigos que merecem.
Fazendo as vezes de vó, anos atrás, contei para os meus filhos a estória de sua bisavó materna: Sylvia Garbero (1907-2004).
Perdoem-me a pretensão, mas a estória de vida de minha vó é uma história com "H" maiúsculo e daria, sem sombra de dúvida, um belo folhetim, mini-série ou até mesmo uma novela global.
Aqui cabem alguns preâmbulos. Este é o primeiro. Não se assustem. Após este, só mais uns, todos necessários para determinar a ancestralidade de vó Sylvia e o porquê do seu DNA trabalhado na audácia e na coragem.
Vó Sylvia era o oposto das avós normais. Estas são senhoras de vida religiosa, comportamento exemplar e total dedicação aos maridos, filhos e netos. Vós normalmente são quietas, mansas, amorosas. Passam o tempo que lhes resta com as suas lembranças, agulhas, tricô, crochê, novelas, rezas, indas e vindas à igreja mais próxima; ou então mimando os netos, transformando em balas, doces e agradinhos o amor que lhes sobra e excede.
Tenham mais um pouco de paciência, pois a personalidade de vó tem muito a ver com a de seu pai e meu bisavó: Jacintho Pedro Garbero(1858-1927).
Bivô Garbero nasceu em Dego, uma pequena vila italiana localizada 50 kms a oeste de Gênova.
Segundo os relatos de família, meu bisavô era filho de um general italiano que lutou com Garibaldi contra o exército austríaco, por ocasião da unificação da Itália.
Sua mãe era a Condessa Divero e naturalmente pertencia à nobreza da região em uma Itália ainda não unificada.
Vó Sylvia nunca se lembrou do nomes dos avós (o general e a Condessa). Nunca entendi o porquê, uma vez que 2 gerações é pouca coisa no tempo.
Para facilitar o entendimento e a fixação dos personagens, eis o galho de minha árvore genealógica do lado materno: Bibivô General gerou Jacintho que gerou Sylvia. Vó Sylvia gerou Shiley, que me gerou.
Voltemos a Jacintho Pedro Garbero - um aventureiro nato. O ragazzo, com apenas 14 anos (pasmem), entrou em um navio cargueiro e clandestino veio parar no Brasil. A família em desespero moveu céus e terras. Por sorte, um parente próximo do general era pároco em algum lugar perto de Juiz de Fora. Após um ano, o pároco localizou Jacintho Pedro Garbero que, à força, foi devolvido à Itália.
Jacintho foi internado (na marra) em um seminário. Aos 18 anos, faltando pouco para se ordenar, fugiu novamente para o Brasil.
Seu pai desistiu. Segundo relatos de vó Sylvia, o general ponderou que o "maledeto" aventureiro agora era maior de idade e que andasse então com as próprias pernas, assumindo os riscos de viver naquela longínqua terra cheia de índios selvagens, feras e perigos mil. A Condessa implorou ao marido que impedisse mais esta loucura do filho Jacintho. O general bateu o pé e não moveu uma palha para resgatar o filho aventureiro.
Bivô Jacintho chegou ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás. Como não conhecia ninguém e muito menos o idioma, conseguiu a duras penas arranjar emprego em uma pedreira nas imediações de Juiz e Fora.
Seu trabalho era corta pedras e transformá-las em pé-de-moleque (aquelas pedras pequenas usadas antigamente no calçamento de ruas).
Jacintho Pedro Garbero, filho de general e de Condessa, batalhava de sol a sol (12 horas por dia) para ganhar o seu sustento. Nas horas de raro descanso imagino que se arrependera da loucura que fizera.
Que nada!... vida que segue e ele seguiu firme, forte e convicto.
No seminário, sem mais alternativa e por dever de ofício, estudava as sagradas escrituras e lia compulsivamente autores clássicos, filósofos e a outros tantos autores fora do Index canônico. Muito jovem virou um homem culto, versado em teologia, filosofia, latim(fluente), grego nos conformes, além do italiano, naturalmente.
Em um país com altíssimo índice de analfabetismo, vô Jacintho era uma joia rara. Muito preparado (como se dizia na época), poucos anos depois aventurou-se no comércio. Neste atividade foi muito bem, obrigado. Mais uns poucos anos e virou fazendeiro. Rapidamente fez fortuna e tornou-se um homem influente e respeitado na região.
Estava com 38 anos e ainda solteiro. A solidão incomodava. Os luxuosos bordéis do Rio de Janeiro já não o satisfaziam. Precisava casar, criar família e sossegar o facho.
Um compadre seu tinha 4 filhas (solteiras) cuja beleza era cantada em prosa e verso na região. Acontece que esta compadre devia uma considerável quantia a bivô Jacintho. Sabedor de sua solteirice, convidou-o para um ajantarado. Com um pouco de sorte, casava uma das filhas com o compadre endinheirado e de quebra poderia conseguir o perdão para a vultosa dívida. Não lograsse sucesso, na pior das hipóteses conseguiria uma dilatação de prazo no vencimento das duplicatas para um futuro distante ou até mesmo para o dia de são-nunca-de tarde.
Mesa posta, filhas na mesa, menos Maria (1885-1953) - a mais nova e na flor dos seus 13 anos.
Vô Jacintho perguntou por Maria. O compadre lhe informou que Maria estava brincando com a sua boneca de paina em cima da goiabeira.
Terminado a ajantarado, vô Jacintho foi conhecer Maria. Minha futura bisavó continuava em cima da goiabeira. O compadre apresentou Maria a meu bisavô. Bivô se encantou com a formusura de Maria que, ato contínuo, beijou a mão do Senhor Jachinto Pedro Garbero, pedindo-lhe a benção.
Após voltaram para a sala de visitar. Maria foi para o seu quarto. Dai a pouco, seu pai a chamou na sala e curto e grosso lhe disse que ela se casaria com o Senhor Jaicntho Pedro Garbero dentro de 6 meses. Maria disse sim, senhor meu pai.
Dito e feito. Jacintho e Maria se casaram. Tiveram 16 filhos e entre eles SYLVIA GARBERO, minha saudosa e muito querida avó. Bivó Maria chamava o marido de Senhor até a morte do cônjuge.
Voltemos à personagem principal.
Vó foi uma mulher muito bonita. Era alta, farta de carnes e por isso muito no agrado dos moços bem-nascidos da região.
Em 1923 casou-se com o meu avô Arthur Emmanuel Barbosa (1897-1950) e em 1924 nascia minha mãe, Shirley Garbero Barbosa.
Vô Arthur era um vistoso homem de olhos verdes, apesar de magro e de baixa estatura.
O problema foi o temperamento de um e outra. Enquanto vó Sylvia era um azougue, vô Arthur era a calma em pessoa. Não poderia dar certo, e não deu mesmo.
Aí começa a saga de vó, pois ela teve a audácia de se separar de vô. Eu disse ela!... Virou mulher desquitada nos anos. Pior, virou mulher "largada" e caiu na boca do povo. Era apontada na rua. As pessoas mudavam de passeio ao avistá-la vindo em sua direção. Foi um Deus nos acuda. Vó, à custa, foi aceita de volta na casa do pai. Bivô Jacintho falava com a filha apenas o estritamente necessário. Bivô Maria constantemente, mas às escondidas, de modo a não contrariar seu marido.
Devido à péssima reputação de vó Sylvia, vô Arthur conseguiu a guarda de mãe ( então com 3 anos) e a entregou aos cuidados de sua irmã Lulu, que morava em Belo Horizonte, na Rua Pouso Alegre, a 100 metros do apartamento onde moro (ironia do destino). Tia Lulu era casada com um descendente de alemães, Rodolfo não- sei-das-quantas. Ele foi um dos primeiros gerentes da fábrica de cerveja Antártica em BH. A cervejaria ficava ao lado da praça da belíssima estação de trem.
Herr Rodolfo bebia paca. Vivia bêbado e não raro tinha crises de fúria, quebrando toda a casa. Comprava tudo de novo e daí a dias quebrava novamente. Felicidade geral dos comerciantes e tristeza de Tia Lulu. Nestes entrementes, mãe no olho do furação. Em tempo (ia me esquecendo), Tia Lulu tinha uma filha (Edith) que regulava em idade com mãe.
Herr Rodolfo era ciumento possessivo e mantinha a família reclusa. Uma vez ou outra passeava de táxi pela cidade. Depois a mulherada voltava para a gaiola de ouro.
Este foi o início da vida de minha vó transitando pelos primórdios do feminismo. E que feminismo!
Mais adiante meus leitores vão reconhecer que as raras mulheres tidas e havidas como feministas eram fichinha perto de vó Sylvia. Muitas ficaram famosas e mau faladas devido à sua rebeldia e audácia, batendo de frente com as rígidas tradições da época.
A vida de vó deu uma guinada brusca em 1927. Neste ano seu pai morreu deixando uma grande fortuna em contos de réis, propriedades e casas de comércio. Todo este patrimônio, sem falar ainda nas dívidas não pagas por devedores que se aproveitaram da falta de documentos para dar "o cano".
Herança, formal de partilha e a filharada se deu bem.
Passado o luto pela morte de vô Jacintho, a vida seguiu e vó, na flor dos seus vinte e poucos anos, estava incomodada com a solidão. Foi então que conheceu um jovem engenheiro (Dr.Oscar) que vinha a ser diretor financeiro ou administrativo da Estrada de Ferro Central do Brasil ou da Viação Centro Oeste(não sei mais ao certo).
Pintou clima e rolou sentimento. Vó Sylvia mais uma vez deu uma solene banana para a opinião pública e foi morar com o Dr.Oscar. Estamos em 1929 e ela, desquitada, desceu impávida mais um degrau em direção da pouca vergonha e da ignomínia. Virou mulher amigada e esconjurada por todos.
Pouco tempo depois, vó Sylvia RAPTOU mãe na casa da Rua Pouso Alegre, aproveitando-se de uma bobeira de Tia Lulu. E como dinheiro não era problema, a bordo do transatlântico alemão, o Cap Arcona, ela, minha mãe, o irmão Pompeu e o Dr.Oscar se mandaram para um tour pela Europa. Começaram o périplo por Paris, Bruxelas, Roma e continuaram por outras capitais menos famosas. Durante meses hospedaram-se nos melhores hotéis, vivendo na flauta e gozando o que a vida tem de melhor.
1930 (tchan tchan tchan than). Estoura a revolução, Getúlio Vargas assume o poder e após se instalar no Palácio do Catete, constituiu o seu ministério. Em seguida, foi para o segundo e terceiro escalão, procurando saber quem era quem nas empresas do governo, autarquias, departamentos e etc e tal.
Começou então a dança das cadeiras. Quem estava com o governo permanecia no cargo. Os opositores eram devidamente defenestrados.
Chegou a vez das ferrovias. Cadê o Dr.Oscar? Tá na Europa com a amante. Getúlio deve ter conversado com o Ministro de Viação e Obras Pública e a este deu a incumbência de dar com o pé na bunda do engenheiro ausente e irresponsável.
A troupe voltou correndo para o Brasil mais quebrada do que arroz de terceira. O dinheiro fora dilapidado na farra pelas "Oropa". Pouco tempo depois, desempregado e desmoralizado, Dr.Oscar deu um tiro na cabeça.
Escândalo (de novo), disse-me-disse, fofocas, maledicências.
Vó de novo no olho de um Katrina, sem direito a guarida, proteção e muito menos piedade.
Alguns anos depois conheceu o Dr. Mário Azevedo, delegado de polícia e mais tarde inspetor de ensino na Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Não deu outra e vó Sylvia juntou as escovas de dente com o delegado. Virou teuta e manteuda de autoridade policial.
Juiz Fora esconjurava a Jezebel. Era vista como a reencarnação de Lilith, afilhada do diabo e exemplo de tudo de ruim a ser evitado por moças e moçoilas.
Em 1954 vó Sylvia conseguiu ser admitida no SAMDU - o equivalente ao SAMU de hoje. As ambulâncias do SAMDU eram tripuladas por um médico, um enfermeiro(a) e pelo motorista da viatura. Qualquer cidadão ou cidadã poderia solicitar socorro médico 24 horas por dia.
A esta altura da vida, vó Sylvia foi aos poucos resgatando o respeito a que tinha direito e depois o reconhecimento de seu valor como pessoa. Foram anos a fio no SAMDU. Nunca perdeu um dia de serviço e era admirada e respeitada por toda Juiz de Fora. Com a extinção do SAMDU, vó foi para o antigo INAMPS, onde se aposentou por idade após muitos anos de bons serviços prestados à instituição.
Foi reconhecida por sua competência, dedicação e carinho com os acidentados e enfermos. Subia e descia morros e ladeiras, debaixo de chuva, carregando a maca junto com o motorista. Segundo alguns deles, vó tinha mais força do que muitos homens.
Aqui termina a História de minha querida vó Sylvia.
Lembro-me dela com muita saudade e respeito por sua coragem de peitar o mundo e as convenções da época. Vó Sylvia encarou a vida de frente, fez o seu destino e procurou a felicidade em um tempo em que ser feliz dependia da subserviência aos manuais de conduta ditados pela igreja e pela conservadorismo de um sociedade hipócrita e dissimulada. Muitos dos pecados que lhe foram atribuídos eram praticados na calada da noite, nas alcovas, puteiros, becos e esquinas mau iluminadas. Muitas senhoras e mocinhas recatadas pintavam o 7 e levavam nas coxas o que não era permitido pela frente
Vó Sylvia pode ter sido uma das maiores feminista de seu tempo. Sua vida fantástica só não alcançou a notoriedade porque ela foi uma mulher comum, perdida no anonimato de uma cidade interiorana.
Seu legado para família foi a coragem e a valentia para ousar. Só fez mal a si mesma; Pagou em preço muito alto por seu destemor. Foi uma mulher muito adiante do seu tempo e um exemplo, isto sim, de independência, assumindo o leme de sua vida por mares nunca dantes navegados.
Deus a tem, com certeza, porque com a mesma audácia com que encarrou a vida, na mesma proporção, ao longo dela, repartiu solidariedade com os menos favorecidos, jamais deixando de estender a sua mão ou deixando de acolher em seu generoso coração a tantos quando dela precisaram. Apesar dos pesares e tribulações, atingiu alturas e lá de cima, em paz com a sua consciência, sabe que a sua vida (muito além do convencional) valeu a pena.
Fazendo as vezes de vó, anos atrás, contei para os meus filhos a estória de sua bisavó materna: Sylvia Garbero (1907-2004).
Perdoem-me a pretensão, mas a estória de vida de minha vó é uma história com "H" maiúsculo e daria, sem sombra de dúvida, um belo folhetim, mini-série ou até mesmo uma novela global.
Aqui cabem alguns preâmbulos. Este é o primeiro. Não se assustem. Após este, só mais uns, todos necessários para determinar a ancestralidade de vó Sylvia e o porquê do seu DNA trabalhado na audácia e na coragem.
Vó Sylvia era o oposto das avós normais. Estas são senhoras de vida religiosa, comportamento exemplar e total dedicação aos maridos, filhos e netos. Vós normalmente são quietas, mansas, amorosas. Passam o tempo que lhes resta com as suas lembranças, agulhas, tricô, crochê, novelas, rezas, indas e vindas à igreja mais próxima; ou então mimando os netos, transformando em balas, doces e agradinhos o amor que lhes sobra e excede.
Tenham mais um pouco de paciência, pois a personalidade de vó tem muito a ver com a de seu pai e meu bisavó: Jacintho Pedro Garbero(1858-1927).
Bivô Garbero nasceu em Dego, uma pequena vila italiana localizada 50 kms a oeste de Gênova.
Segundo os relatos de família, meu bisavô era filho de um general italiano que lutou com Garibaldi contra o exército austríaco, por ocasião da unificação da Itália.
Sua mãe era a Condessa Divero e naturalmente pertencia à nobreza da região em uma Itália ainda não unificada.
Vó Sylvia nunca se lembrou do nomes dos avós (o general e a Condessa). Nunca entendi o porquê, uma vez que 2 gerações é pouca coisa no tempo.
Para facilitar o entendimento e a fixação dos personagens, eis o galho de minha árvore genealógica do lado materno: Bibivô General gerou Jacintho que gerou Sylvia. Vó Sylvia gerou Shiley, que me gerou.
Voltemos a Jacintho Pedro Garbero - um aventureiro nato. O ragazzo, com apenas 14 anos (pasmem), entrou em um navio cargueiro e clandestino veio parar no Brasil. A família em desespero moveu céus e terras. Por sorte, um parente próximo do general era pároco em algum lugar perto de Juiz de Fora. Após um ano, o pároco localizou Jacintho Pedro Garbero que, à força, foi devolvido à Itália.
Jacintho foi internado (na marra) em um seminário. Aos 18 anos, faltando pouco para se ordenar, fugiu novamente para o Brasil.
Seu pai desistiu. Segundo relatos de vó Sylvia, o general ponderou que o "maledeto" aventureiro agora era maior de idade e que andasse então com as próprias pernas, assumindo os riscos de viver naquela longínqua terra cheia de índios selvagens, feras e perigos mil. A Condessa implorou ao marido que impedisse mais esta loucura do filho Jacintho. O general bateu o pé e não moveu uma palha para resgatar o filho aventureiro.
Bivô Jacintho chegou ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás. Como não conhecia ninguém e muito menos o idioma, conseguiu a duras penas arranjar emprego em uma pedreira nas imediações de Juiz e Fora.
Seu trabalho era corta pedras e transformá-las em pé-de-moleque (aquelas pedras pequenas usadas antigamente no calçamento de ruas).
Jacintho Pedro Garbero, filho de general e de Condessa, batalhava de sol a sol (12 horas por dia) para ganhar o seu sustento. Nas horas de raro descanso imagino que se arrependera da loucura que fizera.
Que nada!... vida que segue e ele seguiu firme, forte e convicto.
No seminário, sem mais alternativa e por dever de ofício, estudava as sagradas escrituras e lia compulsivamente autores clássicos, filósofos e a outros tantos autores fora do Index canônico. Muito jovem virou um homem culto, versado em teologia, filosofia, latim(fluente), grego nos conformes, além do italiano, naturalmente.
Em um país com altíssimo índice de analfabetismo, vô Jacintho era uma joia rara. Muito preparado (como se dizia na época), poucos anos depois aventurou-se no comércio. Neste atividade foi muito bem, obrigado. Mais uns poucos anos e virou fazendeiro. Rapidamente fez fortuna e tornou-se um homem influente e respeitado na região.
Estava com 38 anos e ainda solteiro. A solidão incomodava. Os luxuosos bordéis do Rio de Janeiro já não o satisfaziam. Precisava casar, criar família e sossegar o facho.
Um compadre seu tinha 4 filhas (solteiras) cuja beleza era cantada em prosa e verso na região. Acontece que esta compadre devia uma considerável quantia a bivô Jacintho. Sabedor de sua solteirice, convidou-o para um ajantarado. Com um pouco de sorte, casava uma das filhas com o compadre endinheirado e de quebra poderia conseguir o perdão para a vultosa dívida. Não lograsse sucesso, na pior das hipóteses conseguiria uma dilatação de prazo no vencimento das duplicatas para um futuro distante ou até mesmo para o dia de são-nunca-de tarde.
Mesa posta, filhas na mesa, menos Maria (1885-1953) - a mais nova e na flor dos seus 13 anos.
Vô Jacintho perguntou por Maria. O compadre lhe informou que Maria estava brincando com a sua boneca de paina em cima da goiabeira.
Terminado a ajantarado, vô Jacintho foi conhecer Maria. Minha futura bisavó continuava em cima da goiabeira. O compadre apresentou Maria a meu bisavô. Bivô se encantou com a formusura de Maria que, ato contínuo, beijou a mão do Senhor Jachinto Pedro Garbero, pedindo-lhe a benção.
Após voltaram para a sala de visitar. Maria foi para o seu quarto. Dai a pouco, seu pai a chamou na sala e curto e grosso lhe disse que ela se casaria com o Senhor Jaicntho Pedro Garbero dentro de 6 meses. Maria disse sim, senhor meu pai.
Dito e feito. Jacintho e Maria se casaram. Tiveram 16 filhos e entre eles SYLVIA GARBERO, minha saudosa e muito querida avó. Bivó Maria chamava o marido de Senhor até a morte do cônjuge.
Voltemos à personagem principal.
Vó foi uma mulher muito bonita. Era alta, farta de carnes e por isso muito no agrado dos moços bem-nascidos da região.
Em 1923 casou-se com o meu avô Arthur Emmanuel Barbosa (1897-1950) e em 1924 nascia minha mãe, Shirley Garbero Barbosa.
Vô Arthur era um vistoso homem de olhos verdes, apesar de magro e de baixa estatura.
O problema foi o temperamento de um e outra. Enquanto vó Sylvia era um azougue, vô Arthur era a calma em pessoa. Não poderia dar certo, e não deu mesmo.
Aí começa a saga de vó, pois ela teve a audácia de se separar de vô. Eu disse ela!... Virou mulher desquitada nos anos. Pior, virou mulher "largada" e caiu na boca do povo. Era apontada na rua. As pessoas mudavam de passeio ao avistá-la vindo em sua direção. Foi um Deus nos acuda. Vó, à custa, foi aceita de volta na casa do pai. Bivô Jacintho falava com a filha apenas o estritamente necessário. Bivô Maria constantemente, mas às escondidas, de modo a não contrariar seu marido.
Devido à péssima reputação de vó Sylvia, vô Arthur conseguiu a guarda de mãe ( então com 3 anos) e a entregou aos cuidados de sua irmã Lulu, que morava em Belo Horizonte, na Rua Pouso Alegre, a 100 metros do apartamento onde moro (ironia do destino). Tia Lulu era casada com um descendente de alemães, Rodolfo não- sei-das-quantas. Ele foi um dos primeiros gerentes da fábrica de cerveja Antártica em BH. A cervejaria ficava ao lado da praça da belíssima estação de trem.
Herr Rodolfo bebia paca. Vivia bêbado e não raro tinha crises de fúria, quebrando toda a casa. Comprava tudo de novo e daí a dias quebrava novamente. Felicidade geral dos comerciantes e tristeza de Tia Lulu. Nestes entrementes, mãe no olho do furação. Em tempo (ia me esquecendo), Tia Lulu tinha uma filha (Edith) que regulava em idade com mãe.
Herr Rodolfo era ciumento possessivo e mantinha a família reclusa. Uma vez ou outra passeava de táxi pela cidade. Depois a mulherada voltava para a gaiola de ouro.
Este foi o início da vida de minha vó transitando pelos primórdios do feminismo. E que feminismo!
Mais adiante meus leitores vão reconhecer que as raras mulheres tidas e havidas como feministas eram fichinha perto de vó Sylvia. Muitas ficaram famosas e mau faladas devido à sua rebeldia e audácia, batendo de frente com as rígidas tradições da época.
A vida de vó deu uma guinada brusca em 1927. Neste ano seu pai morreu deixando uma grande fortuna em contos de réis, propriedades e casas de comércio. Todo este patrimônio, sem falar ainda nas dívidas não pagas por devedores que se aproveitaram da falta de documentos para dar "o cano".
Herança, formal de partilha e a filharada se deu bem.
Passado o luto pela morte de vô Jacintho, a vida seguiu e vó, na flor dos seus vinte e poucos anos, estava incomodada com a solidão. Foi então que conheceu um jovem engenheiro (Dr.Oscar) que vinha a ser diretor financeiro ou administrativo da Estrada de Ferro Central do Brasil ou da Viação Centro Oeste(não sei mais ao certo).
Pintou clima e rolou sentimento. Vó Sylvia mais uma vez deu uma solene banana para a opinião pública e foi morar com o Dr.Oscar. Estamos em 1929 e ela, desquitada, desceu impávida mais um degrau em direção da pouca vergonha e da ignomínia. Virou mulher amigada e esconjurada por todos.
Pouco tempo depois, vó Sylvia RAPTOU mãe na casa da Rua Pouso Alegre, aproveitando-se de uma bobeira de Tia Lulu. E como dinheiro não era problema, a bordo do transatlântico alemão, o Cap Arcona, ela, minha mãe, o irmão Pompeu e o Dr.Oscar se mandaram para um tour pela Europa. Começaram o périplo por Paris, Bruxelas, Roma e continuaram por outras capitais menos famosas. Durante meses hospedaram-se nos melhores hotéis, vivendo na flauta e gozando o que a vida tem de melhor.
1930 (tchan tchan tchan than). Estoura a revolução, Getúlio Vargas assume o poder e após se instalar no Palácio do Catete, constituiu o seu ministério. Em seguida, foi para o segundo e terceiro escalão, procurando saber quem era quem nas empresas do governo, autarquias, departamentos e etc e tal.
Começou então a dança das cadeiras. Quem estava com o governo permanecia no cargo. Os opositores eram devidamente defenestrados.
Chegou a vez das ferrovias. Cadê o Dr.Oscar? Tá na Europa com a amante. Getúlio deve ter conversado com o Ministro de Viação e Obras Pública e a este deu a incumbência de dar com o pé na bunda do engenheiro ausente e irresponsável.
A troupe voltou correndo para o Brasil mais quebrada do que arroz de terceira. O dinheiro fora dilapidado na farra pelas "Oropa". Pouco tempo depois, desempregado e desmoralizado, Dr.Oscar deu um tiro na cabeça.
Escândalo (de novo), disse-me-disse, fofocas, maledicências.
Vó de novo no olho de um Katrina, sem direito a guarida, proteção e muito menos piedade.
Alguns anos depois conheceu o Dr. Mário Azevedo, delegado de polícia e mais tarde inspetor de ensino na Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Não deu outra e vó Sylvia juntou as escovas de dente com o delegado. Virou teuta e manteuda de autoridade policial.
Juiz Fora esconjurava a Jezebel. Era vista como a reencarnação de Lilith, afilhada do diabo e exemplo de tudo de ruim a ser evitado por moças e moçoilas.
Em 1954 vó Sylvia conseguiu ser admitida no SAMDU - o equivalente ao SAMU de hoje. As ambulâncias do SAMDU eram tripuladas por um médico, um enfermeiro(a) e pelo motorista da viatura. Qualquer cidadão ou cidadã poderia solicitar socorro médico 24 horas por dia.
A esta altura da vida, vó Sylvia foi aos poucos resgatando o respeito a que tinha direito e depois o reconhecimento de seu valor como pessoa. Foram anos a fio no SAMDU. Nunca perdeu um dia de serviço e era admirada e respeitada por toda Juiz de Fora. Com a extinção do SAMDU, vó foi para o antigo INAMPS, onde se aposentou por idade após muitos anos de bons serviços prestados à instituição.
Foi reconhecida por sua competência, dedicação e carinho com os acidentados e enfermos. Subia e descia morros e ladeiras, debaixo de chuva, carregando a maca junto com o motorista. Segundo alguns deles, vó tinha mais força do que muitos homens.
Aqui termina a História de minha querida vó Sylvia.
Lembro-me dela com muita saudade e respeito por sua coragem de peitar o mundo e as convenções da época. Vó Sylvia encarou a vida de frente, fez o seu destino e procurou a felicidade em um tempo em que ser feliz dependia da subserviência aos manuais de conduta ditados pela igreja e pela conservadorismo de um sociedade hipócrita e dissimulada. Muitos dos pecados que lhe foram atribuídos eram praticados na calada da noite, nas alcovas, puteiros, becos e esquinas mau iluminadas. Muitas senhoras e mocinhas recatadas pintavam o 7 e levavam nas coxas o que não era permitido pela frente
Vó Sylvia pode ter sido uma das maiores feminista de seu tempo. Sua vida fantástica só não alcançou a notoriedade porque ela foi uma mulher comum, perdida no anonimato de uma cidade interiorana.
Seu legado para família foi a coragem e a valentia para ousar. Só fez mal a si mesma; Pagou em preço muito alto por seu destemor. Foi uma mulher muito adiante do seu tempo e um exemplo, isto sim, de independência, assumindo o leme de sua vida por mares nunca dantes navegados.
Deus a tem, com certeza, porque com a mesma audácia com que encarrou a vida, na mesma proporção, ao longo dela, repartiu solidariedade com os menos favorecidos, jamais deixando de estender a sua mão ou deixando de acolher em seu generoso coração a tantos quando dela precisaram. Apesar dos pesares e tribulações, atingiu alturas e lá de cima, em paz com a sua consciência, sabe que a sua vida (muito além do convencional) valeu a pena.
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